Por uma Ordem dos Assistentes Sociais

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2006-03-05

Comunicação Professor Doutor Pedro Bacelar no I Congresso Nacional de Serviço Social

Dimensões Constitucionais do Serviço Social *

Professor Doutor Pedro Bacelar
(Universidade do Minho)

Muito obrigado, Sra. Presidente, pelas palavras tão amáveis e pelo convite para me encontrar aqui convosco, numa ocasião extraordinariamente importante pelo seu significado e, assim esperamos, pelas suas consequências históricas. Queria começar por referir que foi com muito gosto que me pronunciei sobre o projecto de Estatutos da futura Ordem dos Assistentes Sociais. Com a Ordem, institucionaliza se a auto regulação do Serviço Social, o que hoje se afigura altamente recomendável, pelo número de profissionais envolvidos, pela redobrada importância que no presente as políticas sociais desempenham, como dever social, como serviço público, como função do Estado e desígnio Europeu. Por isso, e porque tenho as maiores esperanças na criação de uma Ordem dos Assistentes Sociais que possa vir a corresponder a tantas expectativas, solidário com este esforço de qualificação do serviço social e da representação cívica dos seus profissionais, é especialmente gratificante juntar me a vós nesta ocasião.
Este não é o local para considerações de ordem técnica sobre os Estatutos nem o momento para uma excursão às raízes históricas do serviço social ou para um debate filosófico sobre as suas origens, o seu presente e o seu futuro. Por isso queria de uma forma relativamente sucinta colocar algumas questões à vossa consideração, que, de uma forma muito esquemática, irei abordar.

Em primeiro lugar, gostava de destacar que, sugestivamente, o serviço social é na sua mais intima natureza o sucedâneo ou o equivalente funcional da caridade. A caridade é um conceito marcado profundamente pela religiosidade e, sobretudo, pela religiosidade cristã. A parábola do bom samaritano, a figura do fariseu e a condenação do farisaísmo são bem expressivas da importância que lhe é reconhecida. Como disse S. Paulo, não é apenas da fé que vem a “salvação” sem a caridade nada vale a pena. A importância da caridade marca toda a história da humanidade dos últimos dois mil anos e manifesta se em comportamentos e atitudes que continuam activos nas sociedades contemporâneas que reconhecem na caridade uma força vinculativa que não necessita de leis nem juízes nem policias para ser aplicada. Contudo, com as profundas alterações que ocorrem na sociedade a partir do séc. XVIII e séc. XIX, assistimos à secularização da caridade. Não significa isto que, com a sua secularização, ela tenha ficado ausente das nossas preocupações, dos nossos códigos de conduta moral ou cívica ou, sequer, das nossas leis. O que isto significa é que a caridade foi remetida para a esfera privada, onde os procedimentos, as condutas, as acções que se fundam nesse valor, têm apenas como juiz, a consciência de cada um.

Mas enquanto a caridade se remete aos comportamentos privados, o Estado vai se apercebendo que não chega a liberdade e os automatismos do mercado para que a sociedade se torne mais justa e, desta forma, a uma primeira atitude de retraimento e neutralização do Estado perante o que se considerava ser o espaço de livre procura de felicidade de cada indivíduo. Vai se construindo, cada vez com mais força, a ideia de que os poderes públicos não podem fechar os olhos aos imperativos da caridade, à realização da justiça, e que têm de assumir uma parcela de responsabilidade na configuração dos mecanismos que garantam que as perversidades resultantes do funcionamento livre do mercado possam ser compensadas e reguladas pela intervenção pública. Um Estado que se quer também com consciência social, que se quer também identificado com os valores supremos da comunidade que serve. E é por isso que a nossa Constituição detém um número muito elevado de preceitos que directa e especificamente se dirigem ao serviço social. A nossa Constituição, à semelhança de outras, não omite os
deveres do Estado do executivo, do legislador, dos tribunais, da administração, dos cidadãos de garantir o princípio de igualdade e a proibição da discriminação no que respeita à segurança social, à saúde, à habitação, às situações de fragilização que afectam sobretudo determinados grupos em função do género é o caso das mulheres e da violência doméstica, por exemplo da idade, da doença e, desde há uns anos também entre nós, até a garantia de um mínimo de subsistência.

É perante este quadro de tarefas e de responsabilidades públicas e privadas, políticas e morais, religiosas e seculares que a questão concreta da criação de uma Ordem dos Assistentes Sociais deve ser encarada. Eu penso que para além do movimento pendular entre as apologias de uma maior ou menor intervenção do Estado, de um Estado mais torte ou de um Estado mais fraco, entre o auge e o declínio das ideologias e outras narrativas poderosas que no passado mobilizaram a história, que para além de tudo isso, algo permanece essencial na abordagem desta questão: é que o Estado ainda que destituído dos poderes soberanos que outrora se lhe reconheciam, tem um dever de regulação social, por vezes em parceria com outros agentes, no sentido de que a comunidade se conforme num sentido propício à liberdade e à procura da felicidade, consentâneo com a consciência e as ambições de cada um.

Aludimos também à importância e à utilidade social de um principio de auto regulação. No fundo, quando se reconhece a autonomia das Universidades, ou quando se reconhece a autonomia das Autarquias Locais, apenas dois exemplos, está se a admitir que essas entidades melhor poderão prosseguir os interesses e as finalidades que lhes estão confiadas do que uma Direcção Geral, do que uma Secretaria de Estado, do que, por ventura até, um instituto Público especificamente criado para esse efeito. Esta perspectiva é crucial na consideração da importância de uma Ordem dos Assistentes Sociais.

A elevação dos profissionais de serviço social a uma classe, a um nível capaz de auto regulação.

Queria, muito rapidamente, abordar três pontos que me parecem particularmente relevantes na consideração do significado e da importância da Ordem dos Assistentes Sociais.

Em primeiro lugar, queria chamar a atenção para a questão disciplinar. A partir do instante em que os profissionais de serviço social se organizam numa Ordem, inúmeros aspectos da sua actividade do ponto de vista do exercício do poder disciplinar, do controlo do seu desempenho funcional que anteriormente dependiam da entidade empregadora ou do Estado conforme ao estatuto da função pública passam para as mãos dos próprios assistentes sociais. E isto, não é uma oportunidade de fuga às responsabilidades. Bem pelo contrário, cria se desta maneira a possibilidade de tecer uma malha mais fina de controlo dos desempenhos individuais. Isto tem uma consequência: é que sendo os próprios assistentes sociais quem faz esse controlo, podem fazê lo com maior atenção, com maior rigor, e assim garantir maior eficácia e uma mais estrita responsabilização. Neste exercício e na gestão da conflitualidade que lhe é inerente, reside uma oportunidade de desenvolvimento do sentido crítico dos Assistentes Sociais em relação às suas próprias tarefas e uma maior e mais exigente consciência deontológica.

Em segundo lugar, cria se uma possibilidade de compensação da vulnerabilidade dos profissionais, individualmente considerados, perante as conveniências e conjunturas da vida das instituições de solidariedade social ou outras, onde se enquadra a sua actividade profissional. Este ganho de autonomia perante os empregadores públicos ou privados encontra na criação de uma Ordem, um arrimo, um suporte de transcendente significado que não se traduz apenas na defesa sindical dos interesses de uma classe mas que exprime o relevo e o apreço da sociedade pela capacidade e competência dos profissionais que dedicam a sua vida à intervenção neste sector.

Por fim, queria salientar ainda a importância que a constituição de uma Ordem dos Assistentes Sociais reveste para garantir às políticas sociais maior continuidade, maior coerência e adequada qualificação. Uma Ordem dos Assistente Sociais, parceira nos estudos, na preparação e na avaliação dos instrumentos de regulação legislativos ou administrativos sobre as questões sociais, garante continuidade perante as mudanças políticas, promove a sua coerência relativamente às interpretações e exercícios dos múltiplos sectores intervenientes designadamente da administração pública a que estão confiadas parcelas, aspectos distintos do serviço social, contribuindo assim para desfragmentar a actuação dos distintos organismos e permitindo pela sua crítica, pela sua participação, uma qualificação que afaste as questões sociais do terreno da demagogia e que as transforme em questão concreta onde o saber técnico aliado a uma experiência vivida contribuam para definir as balizas e as referências das politicas sociais de que o país carece.

Naturalmente, a criação de uma Ordem não é isenta de riscos. Eu indicaria sucintamente dois: um, como sempre, o corporativismo. Não só o fechamento dos profissionais sobre si próprios, sobre um conjunto de interesses imobilizados no tempo, a sua conservação e conveniências, mas também o risco da criação de resistências à mudança, de negação da flexibilidade e da maleabilidade indispensáveis para que uma sociedade complexa e em acelerada mutação possa corresponder permanentemente aos desafios da mudança social. Por outro lado, o risco da domesticação.

Evidentemente, a parceria com instâncias de decisão política e empregadores envolverá sempre esse risco. Não quererão, com certeza, uma Ordem dos Assistentes Sociais reverente e humilde, que se conforme na expectativa de algumas benesses, de algumas migalhas que porventura possam cair do Orçamento do Estado. Se o objectivo fosse esse, se a tentação de ceder a pressões e aliciamentos prevalecesse, não se justificaria o esforço e o empenho que hoje, aqui, tenho testemunhado.

Por fim, a própria integração europeia vem reforçar o alcance da constituição da Ordem dos Assistentes Sociais. Penso no "modelo social europeu" que nesta fase tão frágil e complexa de construção da união europeia define um dos aspectos que mais positivamente poderá marcar a singularidade deste esforço de integração em espaços supranacionais, numa Europa e num Mundo que desejamos mais generoso. Uma Ordem dos Assistentes Sociais não só garante uma participação em pede igualdade com as organizações similares do espaço europeu e mundial, como será, seguramente um estimável contributo para a afirmação deste modelo social de que justamente nos orgulhamos.

Por isso, muitos parabéns pela realização deste Congresso e todas as felicidades e solidariedade para o sucesso dos vossos projectos.

Muito obrigado.


* Comunicação proferida no I Congresso Nacional de Serviço Social, Aveiro, Maio de 2002

Excerto do parecer emitido pelo Professor Doutor Vital Moreira sobre o Projecto de Estatutos da Ordem

O parecer do professor Vital Moreira incide sobre duas dimensões: a criação de uma Ordem dos Assistentes Sociais, que aqui se publica, e o projecto de estatutos, o qual, pela sua especificidade, se entende não divulgar neste momento.


[...]
2. Antes de tudo, cabe apreciar a pertinência da criação de urna corporação profissional pública para essa profissão, qualquer que seja a designação.

As associações públicas, em geral, são pessoais colectivas de direito público, criadas pelo Estado para organizar um determinado substrato pessoal (conjunto de pessoas), sendo dotadas de certos poderes públicos em relação aos seus membros (poderes regulamentares, poderes administrativos, poderes sancionatórios, etc.). Gozam de autogoverno, tendo órgãos representativos próprios. Normalmente são obrigatórias, sendo a inscrição uma condição de gozo de determinados direitos.
No caso das corporações pública profissionais, elas organizam as pessoas pertencentes à mesma profissão, visando disciplinar o acesso A profissão, manter o registo público da profissão, velar pelo seu correcto exercício, nomeadamente em termos deontológicos, e aplicando as sanções disciplinares pelas infracções praticadas pelos profissionais. Paralelamente as corporações pressionais públicas desempenham também funções de representação profissional e de defesa dos interesses colectivos da profissão, excepto em matéria sindical.
Nos termos da Constituição as associações profissionais, em que se integram as / corporações profissionais públicas, "só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades especificas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada a no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática do seus órgãos" (CRP. art. 267° 4).

No caso das corporações profissionais, o “ interesse específico" que pode justificar a sua criação está naturalmente ligado à necessidade ou vantagem de entregar aos próprios, mediante um esquema de auto regulação ou auto administração, a regulamentação e supervisão da profissão. Para isso são necessárias duas coisas: (1) que a profissão careça de regulação pública, já quanto ao acesso à profissão, já quanto ao seu exercício, nomeadamente sob o ponto de vista deontológico; (2) que essa regulação seja presumivelmente melhor realizada pelos próprios interessados, em auto regulação, do que pela Administração pública-regulação estadual).

Dados os termos relativamente vagos da Constituição, a criação de uma nova corporação profissional pública, não podendo ser arbitrária, releva porém essencialmente da discricionariedade política do Governo e da Assembleia da República. Só em casos limite é que poderia contestar se, sob o ponto de vista jurídico-constitucional, a criação de uma corporação pública, por falta de preenchimento dos respectivos requisitos constitucionais. De facto, estes são assaz fluidos, deixando uma grande margem de liberdade de decisão aos órgãos do poder politico.
Por tudo isto, independentemente do juízo politico que deva fazer se quanto ao risco de proliferação de corporações profissionais públicas, nada parece objectar contra a criação de urna para a profissão dos assistentes sociais,

3. Admitida a criação de urna corporação profissional pública para esta profissão, importa agora apreciar a pertinência da designação de ”ordem” para a mesma.

As ordens são uma espécie das corporações ou associações profissionais de direito público, que integram a categoria constitucional das associações públicas. Entre nós a designação de "ordem" cabia somente às corporações públicas respeitantes às profissões liberais tradicionais (advogados, médicos, farmacêuticos, engenheiros, etc.), baseadas numa formação académica de nível superior (licenciatura) e caracterizadas por urna deontologia profissional assaz exigente. No caso das demais profissionais legalmente organizadas em associação pública usava se a designação de "câmara" (por exemplo, “câmara dos solicitadores” ou “câmara dos despachantes oficiais”) ou outra denominação incaracterística (por exemplo "associação pública profissional de ..."). De resto, a distinção era essencialmente orgânica (a designação de "bastonário" estava reservada para o presidente das ordens) e tinha um alcance essencialmente honorífico. Sob o ponto de vista jurídico material as corporações profissionais públicas têm essencialmente o mesmo regime.
Todavia, desde a criação da ordem dos enfermeiros, essa distinção de designação entre as corporações profissionais públicas deixou de ser seguida pelo legislador, visto que se trata de uma profissão em geral não liberal, pelo que hoje a designação de ordem deixou de ter qualquer conteúdo distintivo. No caso dos assistentes sociais a única possível objecção seria a existência de profissionais sem o grau académico de licenciatura, quando a profissão não exigia tal qualificação académica.

4. As corporações profissional públicas só podem ser uma criação de Estado, por via de lei (lei da Assembleia da República ou decreto lei autorizado). As profissões não podem autoconstituir se em corporação pública.
Normalmente a criação de uma nova corporação pública profissional e feita por proposto pelo Governo à Assembleia da República que tem competência reservada nesta matéria , precedida de petição dos interessados nesse sentido, dirigida ao departamento ministerial competente. Muitas vezes, os estatutos são aprovados por decreto lei do Governo, mediante previa autorização parlamentar. Na maior parte dos casos a criação de uma nova corporação profissional pública não se faz a partir do nada, ocorrendo antes por via de uma transformação de urna anterior associação profissional de direito privado já existente. Nesses casos a associação pública resulta da "publicização" de uma associação privada preexistente.
Também aqui se trata de uma opção politicamente livre do legislador, desde que essa via tenha o consentimento da associação privada em causa.
Jurídico-constitucionalmente a criação de uma corporação profissional pública não depende do consentimento dos interessados, nem anterior, nem posterior. Não se exige portanto nenhum referendo classe. Mas é evidente que a legitimação política de uma iniciativa desta natureza sairá reforçada se tiver por detrás um referendo da profissão suficientemente transparente e convincente
[...]